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简介
"Náufragos" é uma obra cujas fontes são, ao mesmo tempo, o ciclo de poesias "Diante d’El Rey" de Lúcio Lins, e o poema sinfônico "La Mer" de Claude Debussy. Seis quadros sonoros evocam o mar, todos os mares — os mares de fora, e o mar de dentro de nós, as andanças erradias, e os naufrágios infinitos do marinheiro e do poeta. Um minúsculo detalhe de uma gravação do primeiro movimento da obra de Debussy, que eu multiplico e transmuto por processamentos digitais, fornece a quase totalidade da estrutura e da sonoridade da peça. Por outro lado, a voz du próprio poeta reveste uma importância essencialmente musical: mais do que um locutor profissional, eu precisava da voz do Lúcio na música, a concretizar a metáfora que permeia toda a poesia: o náufrago, é o poeta. Ademais, ele realizou uma belíssima encenação teatral para seus poemas; o simulacre de diálogo entre o descubridor fracassado e o Rei onipotente, cria uma permanente vibração entre o real, que no caso pertence ao passado, e o imaginário, domínio do presente. A música procede analogicamente, introduzindo, num contexto sonoro por definição abstrato, pois que oriundo de outra obra musical, elementos concretos a lembrar o universo sonoro do descobrimento: fonografias do mar e músicas rituais amerindias e africanas. As duas outras obras que completam este CD foram escolhidas porque participam do mesmo universo: músicas puramente acusmáticas que, juntas, proporcionam uma experiência sonora peculiar, privilegiando uma escuta mais intimista do que coletiva, mais ativa do que passiva, mais sensual do que cerebral. Ao mesmo tempo, pela sua natureza, elas colocam algumas questões delicadas, senão polémicas, do ponto de vista ético e estético. Posto que todas elas foram geradas a partir da transformação de grandes obras do passado, transformações que passam pela decontextualização, a fragmentação, a diluição, elas tornam incerta e problemática a definição do conceito de criação, de composição autoral, de obra original. Como distinguir a modernosa “releitura” da velha “falsificação”? Não me eximindo desta dificuldade, no entanto acrescento que essas obras instauram e trabalham também outras dicotomias, como música antiga instrumental vs música eletrônica, autenticidade vs parafrase, passado vs presente, e, finalmente, mito vs história. Esta última dicotomia constitui o fundamento da minha interpretação musical do texto da peça "Noite Escura", escrita por Paulo Vieira a partir da biografia de Teresa d’Avila. A música se estrutura em torno de dois pólos: um pólo luminoso representando a ascenção mística de Teresa, e sua relação com Deus através do Anjo; e um pólo sombrio representando a morte e a opressão, inclusive social, uma constante na sua vida. Cada um desse dois pólos tem uma fonte musical histórica: para o pólo luminoso, escolhi o Salmo 90 (“Qui habitat”) do compositor francês Josquin Desprez (1440-1521), que eu processo de tal forma que a presença perceptiva das vozes femininas cantantes, se encontra diluida numa aura eletrônica, tendendo para o irreal, no que acompanha, metaforicamente, a ascensão de Teresa cada vez mais perto do Divino. Em contraste, o dramatismo austero do coral “Pie Jesu Domine” do espanhol Cristobal de Morales (1500-1553) soou para mim como a antítese ideal. Respeitei a essência da sua emocionalidade e força, apenas adensando a polifonia com um conjunto instrumental virtual de sonoridade sombria e solene, onde predominam os instrumentos de sopros graves. Instrumentos telúricos versus irrealidade eletrônica: assim quis traduzir musicalmente a oposição dualista entre o inferno que Teresa vive na terra e o paraíso ao qual ela aspira no céu. É circunstancial que a terceira obra deste CD,"Passio", tenha também a religião como pano de fundo. No entanto, apesar de ateu convicto, eu sempre fui, e sou, um aprofundado ouvinte da música sacra ocidental. A fé cristã, ou pelo menos a tematização desta fé, são sem dúvida responsáveis por algumas das experiências emocionais e estéticas mais profundas e enriquecedoras no campo da música. Se não há deuses, pelo menos essas obras elevam para dimensões espirituais que de alguma forma saciam o anseio de aproximação com o Indizível e o Sublime, que é o próprio do ser humano. Entre esses monumentos, é notório que o imponente prologo da “Paixão segundo João”, com seu duplo coro em estereofonia (“Herr, unser Herrscher”), é uma das mais impressionantes representações sonoras que J. S. Bach tenha dado do sofrimento do Cristo na Cruz. "Passio" penetra na obscuridade obsessiva da sonoridade inicial da obra, na bela interpretação da Chapelle Royale sobre a regência de Philippe Herreweghe, com instrumentos de época. Esta micro-célula sonora é insistentemente martelada, com progressivas adulterações da sua identidade rumo ao ruído. O processamento digital do sinal se limita, estritamente, a uma série de modulações de amplitude e um delay ocasional, uma forte restrição composicional que participa, tal como em "Náufragos", do meu intento de produzir uma arte que faça um uso econômico da tecnologia. A identificação com a fonte vai se perdendo, mas o pulso, que é original de Bach, permanece onipresente, chegando a saturação por aceleração e demultiplicação da modulação. Parafraseando Boulez, em suma, "Bach demeure". >>> Ficha técnica <<< Composição, programação, processamentos digitais, gravação: Didier Guigue. Masterização: SG Studio (Sérgio Gallo, técnico). - Náufragos (2000) – Poemas e voz: Lúcio Lins. Voz pre-gravada no SG Studio, João Pessoa (Sérgio Gallo, téc. de grav.). Utiliza um excerto de “La Mer” de C. Debussy (Orquestra Sinfônica da Rádio Austríaca, Powder Classics). - Passio (2005) – Utiliza excertos da “Johannes Passion” de J. S. Bach (Chapelle Royale e Collegium Vocale, Harmonia Mundi), e de rezadeiras gravadas no interior da Paraíba por Torquato Joel e equipe. - Noite escura (1998) – Utiliza excertos do “Qui Habitat” de J. DesPrez (Huelgas Ensemble, Sony Classical), e do “Pie Jesu Domine” de C. de Morales (Capella Reial de Catalunya, Astrée). Capa e ilustrações: Pintura gentilmente cedida por Sergio Lucena © 1995. Fotografia e digitalizacão: © Gustavo Moura. Este CD fazia parte do Programa "Jubileu" da Universidade Federal da Paraíba para seus 50 anos, em 2005. Infelizmente, não suscitou empenho suficiente para que fosse concretizado. Também submetido ulteriormente a FUNJOPE, que financia projetos culturais na Paraíba, não alcançou interesse. O poeta Lúcio Lins faleceu em 2005 sem vê-lo realizado.