Zero e Um começou numa época em que eu andava lendo muito o Alberto Caeiro. Nesse início da feitura, a letra vinha de uma referência direta a um poema dele (“Quem dera eu fosse um grão do pó na estrada“) e se desenvolvia repetindo o “quem dera” em cada verso, agarrada nessa ótica de se reconhecer minúsculo diante da infinitude das coisas e no lamento por se possuir consciência e poder reconhecer-se enquanto parte de alguma coisa. Um tempo depois, numa dessas vezes em que se fica com o violão no colo, brinquei um arpejo rápido com uma melodia falada e caí, instintivamente reduzindo muito a velocidade, no groove em sol menor do início da música que o Caeiro havia me inspirado a fazer. Gostei de ser pego de surpresa pela mudança brusca e decidi juntar a nova parte com aquela música que eu cria completa. Com essa espécie de prólogo se apresentando e pedindo espaço e com a variação de andamento entre as partes causando uma dinâmica inesperada na canção, a repetição do “quem dera“ como fio condutor dos versos acabou me soando esquemática e enfadonha. Vi que precisava reescrever a letra pra traduzir o que essa nova música me parecia dizer. Mesmo com as mudanças, ainda existe o Caeiro ali. O vazio existencial seguiu naturalmente como ator principal, só ganhou a companhia do “foda-se” que as experiências e reflexões nos ensinam a dar de resposta pras dores da consciência e as certezas matemáticas. — Como todas as outras 12 músicas do disco, gravamos Zero e Um em Buenos Aires. Bateria, sopros e baixo são fruto de uma sessão ao vivo no estúdio MCL Records; as vozes e as guitarras foram gravadas depois, no estúdio na casa do Matias Cella (produtor do disco), pra substituir as guias gravadas na sessão com a banda. Uns meses mais tarde, em Porto Alegre, convidei o Felipe Zancanaro pra acrescentar uma guitarra, que gravamos no quarto de vidro do meu apartamento. Agora ela está aí. Ian